Aquela
era uma carta diferente das demais. Nas costas, onde haveria o arabesco azul, havia
um papel com duas vezes a largura da carta, mas estava dobrado ao meio, de
forma que ficasse exatamente do tamanho do Ás. Sem demora, ansioso e com pressa
William abriu o papel. Nele havia um texto escrito à mão, em letra semelhante
às dicas anteriores.
“Parabéns por ter chegado até aqui. Se aqui
está é porque merece a chave da libertação. Vá imediatamente para baixo do
viaduto do chá, onde começa a calçada grande do Anhangabaú. Ali tem um portão
que dá acesso a um beco e está aberto para você”. William agradeceu o
atendente da biblioteca, que deu de ombros e foi em direção às prateleiras para
arquivar os dois exemplares solicitados pelo visitante. Quando Krahmer colocou
os pés na rua a chuva já começava, com gotas espessas e caindo lentamente. Era
um aviso de uma grande tempestade que chegava. As pessoas que andavam por ali
estavam apressadas. Algumas com guarda-chuvas abertos e outras se protegendo
com objetos, como pastas e bolsas, todas pelo canto da calçada. William não se
preocupava em se molhar, já estava úmido de suor e com a camisa amassada, não
havia razão para se preocupar com tão pouco.
Seus
pensamentos eram todos voltados para a mãe e a namorada, que continuavam presas
a uma bomba. Esses pensamentos causavam arrepios em William. Ele pegou o atalho
da beira do calçamento, onde não havia quase ninguém para bloquear o seu
caminho. Consultou o relógio, que já estava perto das seis da tarde, as nuvens
negras anunciavam antecipadamente a chegada da noite em São Paulo. Lembrou-se
que não tinha nenhuma lanterna. Se o local que estivesse indo visitar fosse
escuro seria quase impossível achar qualquer coisa. Sentiu medo.
Desceu
as escadarias à beirada do viaduto e virou subitamente à esquerda. O portão
ficava do outro lado, na coluna oposta de onde ele havia descido. Foi até lá e
considerou sorte não haver nenhum morador de rua naquele local, certo de que
isso era estranho, considerando a quantidade deles no centro da capital e a
chuva que se aproximava depressa. Tenso, experimentou o trinco e constatou que
realmente estava aberto. O lugar era um corredor estreito, que mal cabia duas
pessoas magras como ele. Era fechado de todos os lados, praticamente um
cubículo dentro de uma gigantesca coluna que sustentava a ponte. A escuridão
completa só era quebrada por uma pequena luz ao final do corredor à direita.
William foi chegando mais perto e quando estava a uns cinco metros de distância
da luz teve certeza de que aquela centelha de iluminação vinha de uma ou duas
velas.
Chegou
a uma passagem onde um dia deveria ter sido uma porta. Uma espécie de sala, que
pela penumbra parecia mais uma caverna. Espalhados pelo chão, cobertores e dois
colchonetes evidenciavam que aquilo era um dormitório de moradores de rua
ausentes. Talvez por isso William não tenha estranhado três velas acesas em
cantos opostos da pequena sala, sobre tampas de plásticos no chão. Nas paredes,
pichações de protestos espalhavam-se por todos os lados. A sala não tinha outra
passagem além da porta pela qual William entrara, mas as velas iluminavam bem, de
certo modo. William começou a jogar para cima os cobertores e a procurar a
chave embaixo dos colchões, sujos e fedorentos.
Não
demorou muito para perceber um brilho metálico ao lado de uma das velas, a que
estava exatamente fazendo oposição à passagem. A luz do fogo facilitava a visão
daquilo que parecia um canivete. William se aproximou, abaixou e pôde sorrir
pela primeira vez naquela tarde. Uma argola continua três objetos metálicos. Um
deles tinha uma cabeça quadrada de espessura maior do que uma chave comum e seu
corpo era cilíndrico e pontiagudo, com uma leve inclinação na ponta, fina como
um prego. No meio do cilindro havia pequenas aberturas irregulares, que
deveriam ser os encaixes de uma fechadura. As outras duas eram chaves
evidentes, menores do que a primeira, em metal fino e com poucos dentes, quase
idênticas. Ele recolheu o objeto e quando se virou deu de cara com um cano de
dois centímetros de espessura, onde passaria facilmente uma bala que seria
suficiente para grudar seus miolos na parede da caverna.
— Vai
aonde, rapaz? — A voz por trás da arma sorria ironicamente. Era a voz do
gravador da sala de Sara, ele não teve dúvidas. O homem continuou — você achou
mesmo que eu deixaria você sair assim fácil dessa empreitada, pirralho?
O
rosto do homem se fechou. Ele era calvo, com cabelos grisalhos por cima das
orelhas e o rosto queimado do sol. Os olhos negros, nariz volumoso e lábios
finos. Não parecia em nada com o angelical rosto de Sara. William até então não
conhecia a figura de seu sogro. Ele deixara a menina muito nova com a mãe e ela
nunca lhe deu importância.
—
Você é um maníaco maldito. Independente do desfecho dessa história, você vai
pra cadeia, seu crápula — gritou William.
—
Ora, ora, o filhinho de papai acha que eu estou preocupado com isso. Veja aqui
moleque, eu reconquistei tudo que Madalena tirou de mim. Eu não estou nem aí
pra você, nem pra sua mãe e muito menos pra vadia da Sara, que nunca quis saber
do pai. Eu vou te matar agora e deixar que as duas explodam.
William
sentia vontade de chorar. Tinha uma raiva mortal daquele sujeito. Precisava
pensar em algum jeito de voar para cima dele sem antes receber uma bala, mas o
homem estava próximo da entrada, a uns três metros de William, que não chegaria
a tempo de evitar que o psicopata puxasse o gatilho.
—
Por que você colocou minha mãe nessa história? Como fez isso? — William
questionava, nervoso, enquanto o homem ria de sua malfeitoria.
—
Você quer conhecer os meus métodos? Eu atraí Sara para casa por uma mensagem em
seu celular. Quando a recebi, tranquei-a na parede, presa à bomba. Do celular
da fedelha eu mandei uma mensagem para sua mãe, pedindo para que ela fosse até lá,
porque você estava passando mal e Sara estaria cuidando de você. Não demorou
muito para que a mamãe fosse proteger o seu filho.
“Quando
ela chegou foi amarrada à cama como a encontrou e medicada para que dormisse
como um anjo por muitas horas. Ativei a bomba de forma que você sofresse muito
para achar as chaves e não tivesse tempo de desarmar o explosivo. Mas pelo jeito
você é um garoto muito esperto. Mas não mais do que eu. Tinha meu plano B e
agora estou aqui com ele. E sua esperteza acabou lhe rendendo um baita azar,
porque agora terei de estourar seus miolos. E daqui a exatamente quarenta
minutos as suas amadas te encontrarão no inferno”.
O
homem soltou uma gargalhada, fez uma careta e disse “adeus”. O som do tiro
dentro daquela caverna pequena e sem vazão quase estourou os tímpanos de
William. Ele ouvia um zumbido forte nos ouvidos enquanto via com nitidez um
furo grande na testa do homem calvo, que desabou de joelhos, com os olhos
abertos e sangue derramando de seus neurônios. Enquanto ele caía, William via o
cano da arma que se abaixava por trás do bandido, segurada por uma mão pequena
e delicada que usava luvas. Quando o homem desabou no chão já cheio de seu
sangue, William Krahmer reconheceu Vera, que acabara de salvar a sua vida.
—
Vai William. Corre, você tem pouco tempo. — William estava estagnado, de boca
aberta e olhos arregalados.
—
Como você chegou até aqui? Como soube? Oh, meu Deus.
—
Você parece que não me conhece. Me ligou dizendo que na carta que havia na mão
estava escrito bibli, aquela que representava Alexandre O Grande. Eu não estava
gostando nada dessa brincadeira e uni os pontos. Eu posso ser uma cartomante de
quinta categoria, mas Deus me deu alguma sabedoria. Fui até a biblioteca mais
perto de seu trabalho e quando cheguei lá você estava saindo. Tive apenas tempo
de comprar essas luvas de um camelô no meio do caminho. Vim precavida, sabia
que algo de estranho estava acontecendo. Ouvi toda sua conversa com este
salafrário antes de manda-lo para o inferno. Agora vá, eu me viro com este
corpo. Os moradores de rua gostarão de dar um fim nisso aqui por algumas notas
de cem. Vá! — Vera abriu caminho e William Krahmer saiu do beco, na velocidade
maior que poderia.
Chamou
um táxi e deu o endereço da casa de Sara. Faltavam exatos vinte minutos para a
explosão. Apenas cinco quando o táxi estacionou na porta da casa. William mal
esperou o táxi parar, saltou e foi correndo para dentro com as três chaves à
mão. Sara tentava berrar quando viu o namorado, mas a mordaça não deixava que
dali saísse nada além de gemidos. Ele precisava achar o orifício destinado a
desativar aquela porcaria. Procurou em volta da caixa com cuidado para não
movê-la. Não achava nada. Era um trambolho estranhamente liso, apenas com uma
saliência onde havia o relógio, que já marcava três minutos para a explosão.
Ouviu Sara gemendo com veemência e subiu o olhar até seu rosto. Ela desviava o olho
em direção à cozinha, como se pedisse para ele ir até lá.
Sobre
a mesa de jantar havia uma chave de fenda. William entendeu o recado, pegou e
levou até a sala. Dois minutos. Em volta da caixa havia vários parafusos que
seguravam o lacre que protegia os componentes internos responsáveis pelo
impacto. No canto inferior direito ele viu uma minúscula abertura em formato
quadrado que indicava uma tampa. Ela era segura apenas por um parafuso. Um
minuto.
William
Krahmer tremia, abriu com dificuldade a tampinha. Atrás dela havia um único
buraco. Nos últimos segundos a bomba começou a soltar bips, que aumentaram o
nervosismo de William. Se ele não desativasse o explosivo seria os últimos
segundos de sua vida e aquele bip seria o barulho derradeiro que ouviria.
Lembrou-se da infância, de quando jogava futebol com os amigos na rua, das
brincadeiras da escola, do primeiro beijo, assistido pelos colegas atrás de uma
pilastra do colégio que estudava. Lembrou-se do pai, da mãe e de Vera. Aos oito
segundos para a explosão, ele enfiou a chave esférica pelo buraco e girou.
Ouviu um clique e depois o silêncio. Não havia mais o bip da bomba. Apenas
Sara, que desabou a chorar.


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