segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Carteado (Parte final)

Aquela era uma carta diferente das demais. Nas costas, onde haveria o arabesco azul, havia um papel com duas vezes a largura da carta, mas estava dobrado ao meio, de forma que ficasse exatamente do tamanho do Ás. Sem demora, ansioso e com pressa William abriu o papel. Nele havia um texto escrito à mão, em letra semelhante às dicas anteriores.
Parabéns por ter chegado até aqui. Se aqui está é porque merece a chave da libertação. Vá imediatamente para baixo do viaduto do chá, onde começa a calçada grande do Anhangabaú. Ali tem um portão que dá acesso a um beco e está aberto para você”. William agradeceu o atendente da biblioteca, que deu de ombros e foi em direção às prateleiras para arquivar os dois exemplares solicitados pelo visitante. Quando Krahmer colocou os pés na rua a chuva já começava, com gotas espessas e caindo lentamente. Era um aviso de uma grande tempestade que chegava. As pessoas que andavam por ali estavam apressadas. Algumas com guarda-chuvas abertos e outras se protegendo com objetos, como pastas e bolsas, todas pelo canto da calçada. William não se preocupava em se molhar, já estava úmido de suor e com a camisa amassada, não havia razão para se preocupar com tão pouco.

Seus pensamentos eram todos voltados para a mãe e a namorada, que continuavam presas a uma bomba. Esses pensamentos causavam arrepios em William. Ele pegou o atalho da beira do calçamento, onde não havia quase ninguém para bloquear o seu caminho. Consultou o relógio, que já estava perto das seis da tarde, as nuvens negras anunciavam antecipadamente a chegada da noite em São Paulo. Lembrou-se que não tinha nenhuma lanterna. Se o local que estivesse indo visitar fosse escuro seria quase impossível achar qualquer coisa. Sentiu medo.


Desceu as escadarias à beirada do viaduto e virou subitamente à esquerda. O portão ficava do outro lado, na coluna oposta de onde ele havia descido. Foi até lá e considerou sorte não haver nenhum morador de rua naquele local, certo de que isso era estranho, considerando a quantidade deles no centro da capital e a chuva que se aproximava depressa. Tenso, experimentou o trinco e constatou que realmente estava aberto. O lugar era um corredor estreito, que mal cabia duas pessoas magras como ele. Era fechado de todos os lados, praticamente um cubículo dentro de uma gigantesca coluna que sustentava a ponte. A escuridão completa só era quebrada por uma pequena luz ao final do corredor à direita. William foi chegando mais perto e quando estava a uns cinco metros de distância da luz teve certeza de que aquela centelha de iluminação vinha de uma ou duas velas.
Chegou a uma passagem onde um dia deveria ter sido uma porta. Uma espécie de sala, que pela penumbra parecia mais uma caverna. Espalhados pelo chão, cobertores e dois colchonetes evidenciavam que aquilo era um dormitório de moradores de rua ausentes. Talvez por isso William não tenha estranhado três velas acesas em cantos opostos da pequena sala, sobre tampas de plásticos no chão. Nas paredes, pichações de protestos espalhavam-se por todos os lados. A sala não tinha outra passagem além da porta pela qual William entrara, mas as velas iluminavam bem, de certo modo. William começou a jogar para cima os cobertores e a procurar a chave embaixo dos colchões, sujos e fedorentos.
Não demorou muito para perceber um brilho metálico ao lado de uma das velas, a que estava exatamente fazendo oposição à passagem. A luz do fogo facilitava a visão daquilo que parecia um canivete. William se aproximou, abaixou e pôde sorrir pela primeira vez naquela tarde. Uma argola continua três objetos metálicos. Um deles tinha uma cabeça quadrada de espessura maior do que uma chave comum e seu corpo era cilíndrico e pontiagudo, com uma leve inclinação na ponta, fina como um prego. No meio do cilindro havia pequenas aberturas irregulares, que deveriam ser os encaixes de uma fechadura. As outras duas eram chaves evidentes, menores do que a primeira, em metal fino e com poucos dentes, quase idênticas. Ele recolheu o objeto e quando se virou deu de cara com um cano de dois centímetros de espessura, onde passaria facilmente uma bala que seria suficiente para grudar seus miolos na parede da caverna.
Vai aonde, rapaz? — A voz por trás da arma sorria ironicamente. Era a voz do gravador da sala de Sara, ele não teve dúvidas. O homem continuou — você achou mesmo que eu deixaria você sair assim fácil dessa empreitada, pirralho?
O rosto do homem se fechou. Ele era calvo, com cabelos grisalhos por cima das orelhas e o rosto queimado do sol. Os olhos negros, nariz volumoso e lábios finos. Não parecia em nada com o angelical rosto de Sara. William até então não conhecia a figura de seu sogro. Ele deixara a menina muito nova com a mãe e ela nunca lhe deu importância.
— Você é um maníaco maldito. Independente do desfecho dessa história, você vai pra cadeia, seu crápula gritou William.
— Ora, ora, o filhinho de papai acha que eu estou preocupado com isso. Veja aqui moleque, eu reconquistei tudo que Madalena tirou de mim. Eu não estou nem aí pra você, nem pra sua mãe e muito menos pra vadia da Sara, que nunca quis saber do pai. Eu vou te matar agora e deixar que as duas explodam.
William sentia vontade de chorar. Tinha uma raiva mortal daquele sujeito. Precisava pensar em algum jeito de voar para cima dele sem antes receber uma bala, mas o homem estava próximo da entrada, a uns três metros de William, que não chegaria a tempo de evitar que o psicopata puxasse o gatilho.
— Por que você colocou minha mãe nessa história? Como fez isso? — William questionava, nervoso, enquanto o homem ria de sua malfeitoria.
— Você quer conhecer os meus métodos? Eu atraí Sara para casa por uma mensagem em seu celular. Quando a recebi, tranquei-a na parede, presa à bomba. Do celular da fedelha eu mandei uma mensagem para sua mãe, pedindo para que ela fosse até lá, porque você estava passando mal e Sara estaria cuidando de você. Não demorou muito para que a mamãe fosse proteger o seu filho.
“Quando ela chegou foi amarrada à cama como a encontrou e medicada para que dormisse como um anjo por muitas horas. Ativei a bomba de forma que você sofresse muito para achar as chaves e não tivesse tempo de desarmar o explosivo. Mas pelo jeito você é um garoto muito esperto. Mas não mais do que eu. Tinha meu plano B e agora estou aqui com ele. E sua esperteza acabou lhe rendendo um baita azar, porque agora terei de estourar seus miolos. E daqui a exatamente quarenta minutos as suas amadas te encontrarão no inferno”.
O homem soltou uma gargalhada, fez uma careta e disse “adeus”. O som do tiro dentro daquela caverna pequena e sem vazão quase estourou os tímpanos de William. Ele ouvia um zumbido forte nos ouvidos enquanto via com nitidez um furo grande na testa do homem calvo, que desabou de joelhos, com os olhos abertos e sangue derramando de seus neurônios. Enquanto ele caía, William via o cano da arma que se abaixava por trás do bandido, segurada por uma mão pequena e delicada que usava luvas. Quando o homem desabou no chão já cheio de seu sangue, William Krahmer reconheceu Vera, que acabara de salvar a sua vida.
— Vai William. Corre, você tem pouco tempo. — William estava estagnado, de boca aberta e olhos arregalados.
— Como você chegou até aqui? Como soube? Oh, meu Deus.
— Você parece que não me conhece. Me ligou dizendo que na carta que havia na mão estava escrito bibli, aquela que representava Alexandre O Grande. Eu não estava gostando nada dessa brincadeira e uni os pontos. Eu posso ser uma cartomante de quinta categoria, mas Deus me deu alguma sabedoria. Fui até a biblioteca mais perto de seu trabalho e quando cheguei lá você estava saindo. Tive apenas tempo de comprar essas luvas de um camelô no meio do caminho. Vim precavida, sabia que algo de estranho estava acontecendo. Ouvi toda sua conversa com este salafrário antes de manda-lo para o inferno. Agora vá, eu me viro com este corpo. Os moradores de rua gostarão de dar um fim nisso aqui por algumas notas de cem. Vá! — Vera abriu caminho e William Krahmer saiu do beco, na velocidade maior que poderia.
Chamou um táxi e deu o endereço da casa de Sara. Faltavam exatos vinte minutos para a explosão. Apenas cinco quando o táxi estacionou na porta da casa. William mal esperou o táxi parar, saltou e foi correndo para dentro com as três chaves à mão. Sara tentava berrar quando viu o namorado, mas a mordaça não deixava que dali saísse nada além de gemidos. Ele precisava achar o orifício destinado a desativar aquela porcaria. Procurou em volta da caixa com cuidado para não movê-la. Não achava nada. Era um trambolho estranhamente liso, apenas com uma saliência onde havia o relógio, que já marcava três minutos para a explosão. Ouviu Sara gemendo com veemência e subiu o olhar até seu rosto. Ela desviava o olho em direção à cozinha, como se pedisse para ele ir até lá.
Sobre a mesa de jantar havia uma chave de fenda. William entendeu o recado, pegou e levou até a sala. Dois minutos. Em volta da caixa havia vários parafusos que seguravam o lacre que protegia os componentes internos responsáveis pelo impacto. No canto inferior direito ele viu uma minúscula abertura em formato quadrado que indicava uma tampa. Ela era segura apenas por um parafuso. Um minuto.

William Krahmer tremia, abriu com dificuldade a tampinha. Atrás dela havia um único buraco. Nos últimos segundos a bomba começou a soltar bips, que aumentaram o nervosismo de William. Se ele não desativasse o explosivo seria os últimos segundos de sua vida e aquele bip seria o barulho derradeiro que ouviria. Lembrou-se da infância, de quando jogava futebol com os amigos na rua, das brincadeiras da escola, do primeiro beijo, assistido pelos colegas atrás de uma pilastra do colégio que estudava. Lembrou-se do pai, da mãe e de Vera. Aos oito segundos para a explosão, ele enfiou a chave esférica pelo buraco e girou. Ouviu um clique e depois o silêncio. Não havia mais o bip da bomba. Apenas Sara, que desabou a chorar.


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