sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Carteado (Parte 4)

O padre estava perplexo. A freira continuou como uma estátua, horrorizada com a descoberta. William Krahmer permaneceu mais um instante pensativo, imaginando quando aquilo acabaria. Ele fora ali atrás de uma chave que pudesse liquidar essa brincadeira homicida. E nada encontrou além de um rei de paus, que, para ele, não significava nada naquele momento.
— Como isso veio parar na minha bíblia? —Indagou o padre, ainda em choque.
— O senhor deixou esta sala vazia em algum instante hoje? — William questionava sem muito interesse.
— Apenas pela manhã. Eu cheguei aqui após o meio dia.
— De manhã estava aberta e assim ficou por alguns minutos quando eu conversava com uma fiel no salão da igreja — acrescentou a freira.

— Provavelmente foi nesta hora que alguém entrou aqui e colocou este objeto. Podem ficar tranquilos. Essa pessoa fez isso para me atrair até aqui. Nada querem contra vocês ou contra a igreja. Vocês foram úteis, muito obrigado. — William agradeceu e saiu em disparada para fora da igreja.
No meio da Praça da Sé, o vendedor de pacotes aéreos se viu como uma agulha num palheiro cheio de mistérios. Não sabia como proceder a partir dali. Já passava das três da tarde e ele já via as nuvens fechando as últimas brechas que o sol encontrava para derramar luz sobre a cidade. Não demoraria a chover e William precisava se apressar. Uma chuva no meio de sua busca poderia atrapalhar.
Ele refletiu por alguns minutos e quase decidiu hesitar em ligar para Vera mais uma vez. Mas se viu sem saída. Até ali, Vera havia sido extremamente útil para a localização daquelas pistas. Sem ela certamente William Krahmer não teria chegado àquele rei de paus. Mais uma vez discou o número de Vera e percebeu que ela já esperava sua ligação quando a resposta veio logo após o primeiro toque.
— William, é melhor se abrir comigo. Eu não estou gostando nada dessa história e sua mãe também não deve estar! — Disse Vera em tom ríspido.
— Escute, Vera. Eu não tenho tempo para explicações. Você tem me ajudado bastante nos esclarecimentos e eu prefiro que por enquanto continue assim. — William gostou do modo como respondeu, incisivo e direto.
— Qual é sua dúvida agora? — A voz de Vera era de quem fora vencida por seu argumento.
— O rei de paus. O que significa o rei de paus?
— Eu já imaginava que era isso. Bom, dando continuidade à minha última explicação, o rei, como você já deve ter imaginado, vem logo após a dama, é uma carta mais forte que as outras duas que você solicitou explicação, de forma geral. O naipe de paus representa Alexandre O Grande, o rei da macedônia. Foi um herói no oriente médio. — Vera parou de falar, esperando resposta. Percebeu, daquele lado da linha, que seu esclarecimento não havia sido suficiente, pois William não retornou como ela esperava. — Entendeu? Alexandre O Grande é o naipe de paus. Não foi útil?
— Não neste momento. Não me ocorreu nada.
— Se você não me disser o que é eu não vou poder ajudar de forma mais satisfatória. — Vera deu um sorriso de canto. Sabia que a falta de esclarecimento na cabeça do rapaz era um fator a seu favor.
— Tá. Alexandre é o rei de paus. Obrigado Vera. Se precisar te retorno.
William desligou e Vera revirou os olhos, bufou de raiva e, curiosa, continuou sem saber o que ele queria. Mas parou o que estava fazendo para estudar todas as indagações que recebeu desde o começo da tarde. Começou a juntar os pontos. As suas leituras nem sempre terminavam da forma como gostaria, mas Vera era inteligente e sabia como lidar com situações parecidas com aquela. Em outra ocasião, não muito distante, ela ajudara a polícia como testemunha a desvendar um caso de assassinato que havia presenciado. A polícia estava sem saída na resolução daquele crime e Vera apresentou um detalhe do local que ajudou as autoridades na localização do criminoso. Era isso que ela pretendia fazer agora, pensando com seus botões.


William estava sentado em um banco, solitário, com as mãos no rosto e pensativo. Rebobinou sua memória para a cena desgraçadamente assustadora da casa de Sara. Veio trazendo os acontecimentos daquela tarde até o momento em que se encontrava cheio de dúvidas. Nada lhe ocorreu que ajudasse a desvendar aquela charada, que estava em suas mãos. Observou a carta. Olhou o bonito arabesco azul em suas costas e do outro lado o rei, olhando para ele. O rei ria de sua cara, como quem gostaria de dizer que ele era um derrotado. Gargalhava. Incomodava a risada daquele maldito rei. Apoiou o polegar no meio da carta e sentiu uma saliência. Quando apertava, a carta afundava e depois voltava ao seu lugar, como se tivesse uma bolsa de ar no meio do objeto. Como isso é possível?
William aproximou a carta dos olhos e percebeu que havia uma irregularidade nas suas extremidades. Observou que as duas faces da carta haviam sido separadas e juntadas novamente. Enfiou a unha contra a junção dos dois lados e foi descolando devagar o arabesco do rei. Puxou por completo e pegou uma fita de papel fino que estava no interior da carta de baralho. Nela estava escrito “Bibli”, em grafia exatamente idêntica à das demais pistas. “Bibli” e “Alexandre O Grande”. Era aquilo que William Krahmer tinha em mãos para salvar sua mãe e sua namorada. Pouco mais de três horas separavam aquele instante da explosão da bomba e ele imediatamente ligou para sua consultora.
— Vera, Alexandre tem algo relacionado à bíblia?
— Não, ele não e um personagem bíblico como Judite. Por quê?
— Nesta carta eu encontrei a palavra “bibli” gravada e... — William parou de falar e desvendou o mistério daquela pista. Antes que Vera perguntasse o que houve, ele agradeceu e desligou o telefone. Caminhando, entre os atalhos do lugar que já conhecia bem, ele partiu com destino à biblioteca Mário de Andrade.
Era a biblioteca mais próxima de William. Ele imaginou que não pudesse estar em outra. Localizada no final da Rua da Consolação, a biblioteca era um prédio grande e retangular. Tinha um breve jardim na entrada. Àquela hora estava vazia. William entrou e foi até o balcão. A atendente demorou a se levantar de seu computador e, sem muita pressa, se dirigiu até o visitante.
— Pois não, senhor?! — Disse a moça de forma entediada.
— Eu gostaria de ver o livro de Alexandre O Grande.
— Qual deles? — A pergunta surpreendeu William, que olhou com expressão de dúvida para a atendente. Ela deu um sorriso de desdém para William e completou — aqui nós temos dezenas de livros sobre Alexandre. Está vendo aquele computador? Pode utilizá-lo para achar o exemplar que quer ver. — Ela apontou para um computador aparentemente bem usado, daqueles que já estão por tempo demais naquele local. Em seguida, virou as costas e voltou para sua mesa.
William foi até o computador, conforme indicou a atendente, e pesquisou o que queria. Uma página cheia de capas apareceu na sua frente. Foi olhando cada título e um chamou a sua atenção. “O enigma de Alexandre O Grande”, de Will Adams. Achou que a palavra “enigma” era a deixa que precisava e torceu para que este não tivesse relação alguma com o enigma que precisava desvendar. Lembrou-se da carta e concluiu que o rei é a última carta do baralho. Encheu-se de esperança por sentir a possibilidade de finalmente colocar as mãos na chave que buscava.
Voltou ao balcão e pediu o livro escolhido através do código. A mulher saiu e demorou a voltar com o exemplar solicitado. William pegou com uma pressa que chamou a atenção da moça. Folheou o livro e não encontrou nada. Chamou a atendente e perguntou se não tinha outra unidade daquele título na biblioteca. Ela respondeu visivelmente irritada.
— Senhor, o mesmo conteúdo deste exemplar é o que o senhor vai encontrar no outro. Que diferença faz?
— Acredite, para mim pode fazer a maior diferença. Por favor, te suplico, pegue para mim o outro exemplar.
Impaciente, a atendente pediu para que ele aguardasse. Dez minutos depois ela voltou com o livro de capa preta. Este exemplar tinha a capa um pouco mais destruída, com pontas gastas como se tivesse sofrido muitos maus tratos com dobras descuidadas de seus manuseadores. William folheou de forma rápida e não precisou muito tempo para achar a página que gostaria. Exatamente no meio do livro, onde há separação de folhas na brochura, havia mais uma das intermináveis cartas de baralho.

Ele pegou o Ás de ouro, que estava perfeitamente encaixado na lombada com a face virada para cima. Nada estava escrito. Ele virou a carta e foi imediatamente surpreendido. Nas costas dela não tinha um lindo arabesco azul.

(Leia também a Parte 1, Parte 2 e Parte 3)

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