quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Carteado (Parte 3)

Sem fazer barulho, William pegou a dama de copas e observou. Desta vez havia algo escrito na borda da carta ao lado do arabesco azul, às costas da dama, que observava o rapaz com serenidade, enquanto o rosto de William transparecia a dúvida e incredulidade. “Subway”, em pequena letra manuscrita com esferográfica de ponta muito fina na cor preta.
— Este psicopata está testando minha inteligência. — murmurou.
Precisava partir dali antes que fosse visto e a polícia fosse chamada. Se tivesse que dar explicações às autoridades desperdiçaria muito tempo e poderia colocar tudo a perder. Abriu lentamente a porta do depósito e ouviu passos vindos da direção da escada. Com um frio na espinha ele apoiou as costas contra a porta e esperou. Ouviu os passos atrás de si, passando pela porta onde estava e entrando na próxima, do outro lado do corredor. Abriu novamente e andou até a escada. Encostado na parede observou escada abaixo. Ninguém subia e ele partiu rápido, com passos silenciosos.


O recepcionista continuava confortavelmente em sua poltrona, de modo que seria fácil sua saída do prédio da prefeitura. Não fosse a urgência da operação, William esboçaria a ideia de ficar ali por mais tempo. O ar condicionado era refrescante e a visão que tinha de fora não era nada animadora. Passou pelo portão ao lado da catraca, esgueirou-se pelo canto do balcão e saiu do prédio sem ser visto. Aquela brincadeira armada pelo assassino não estava sendo legal. Já eram duas da tarde quando ele se viu novamente no viaduto do chá. “Subway”. Dama de copas. Mais um enigma que o fez pegar o telefone.
— Vera, desculpe te atrapalhar mais uma vez, mas você é a pessoa mais indicada para me ajudar. — dessa vez, William não conseguiu esconder a aflição por algo que o perturbava.
— Garoto, você está me deixando preocupada. Está tudo bem com a sua mãe? — embora, assim como a mãe, William não costumasse acreditar nas previsões de Vera, ele havia esquecido que a atividade como cartomante talvez lhe aguçasse os sentidos.
— Está tudo bem. Você me ajudou da última vez. Agora preciso que me fale um pouco sobre a dama. A dama do baralho.
Vera sabia não estava enganada. As dúvidas de William faziam parte de algo muito sério que estava acontecendo e ela tinha convicção de que Sandra estava envolvida. Não era comum ver William com a agitação que se encontrava naquele momento. Tentava achar na voz do rapaz algo que esclarecesse suas ideias. Ela não dormiria sem saber o que estava havendo.
— William, não sei onde anda se metendo, mas é bom que me diga logo. Não gosto de enigmas e talvez possa te ajudar melhor caso se abra comigo. — Ela ainda não sabia que William também odiava enigmas, sobretudo aquele.
— Você vai entender. Mas preciso primeiro que me diga o que representa a dama de copas. — William tremia. Enquanto falava ao telefone, enxugava o suor na testa e girava de um lado para o outro, como alguém que tivesse perdido e procurando a pessoa com a qual iria ao encontro.
— A dama é a carta que vem imediatamente após o valete, que você me questionou mais cedo. Ela significa a Rainha, que está acima do empregado. A dama de copas historicamente é ligada à Judite, uma personagem da bíblia, do livro de Gênesis... — antes que Vera continuasse William a interrompeu.
— Está bem, Vera. Não preciso de mais, já sei o que fazer. Obrigado.
Mal se despediu da sua cúmplice e desligou o telefone. Aliado à explicação de Vera com o que estava escrito na carta de baralho, William sabia o que fazer. “Subway”. O recado poderia ser confundido, mas William já estava muito esperto e concentrado para entender a pegadinha do psicopata que prendera Sara e Sandra. William chamou um táxi e sem mais delongas pediu para que o levasse até a catedral a Sé, que fica exatamente sobre a estação de metrô.
O monumento que era a catedral impressionava. William passara por ali inúmeras vezes, mas nunca reparou na riqueza daquela arquitetura e nem o que estava à sua volta. A praça na frente da igreja, àquela hora, estava cheia. Transeuntes circulavam com pressa e iam para todos os lados. Alguns homens com placas anunciavam venda de ouro e idosos sentados em bancos jogavam migalhas de pães aos pombos, que chegavam aos montes. William passava dentre as pessoas e subia as escadarias da igreja quando foi abordado por um homem que pedia dinheiro. Ignorou o sujeito e entrou. Havia silêncio quase absoluto, quebrado apenas pelo barulho que vinha de fora. No corredor de bancos à direita duas mulheres faziam sua oração. À esquerda, uma freira estava ajoelhada, com a cabeça erguida e o olhar fixo no altar imponente à sua frente. William ainda não sabia como e onde procurar o objeto que buscava. Na sua cabeça, imaginara que em algum canto havia a chave que libertaria a namorada e a mãe do inferno criado pelo homem.
“Judite é do livro de gênesis”. William se concentrava nas palavras de Vera. Passou por todos os pilares internos da igreja e observou cada passo de Jesus na via sacra. Nada havia sobre gênesis que o esclarecesse. Subiu até o altar na busca por uma bíblia. A freira que fazia sua oração em um dos bancos franziu o cenho, achando estranho a pressa e a procura daquele cidadão de trajes sociais, mas nada asseado.
— Procura por alguém, rapazinho? — William foi surpreendido pela irmã.
— Ãh...na verdade eu procuro por algum objeto. — A freira voltou a arquear as sobrancelhas, com expressão de desentendida. — Irmã, eu procuro por algo que se eu disser a senhora vai achar que eu estou louco.
— Em quê posso ajuda-lo?
— Preciso localizar uma bíblia que fique disponível para o público. Isso existe aqui na catedral?
— Disponível o tempo todo? Não. A bíblia mais acessível é a que o padre usa na santa missa. Apenas quem trabalha na igreja e o próprio padre a utilizam.
— Pode me levar até ela?
— Qual o seu anseio?
— Preciso ler o livro do gênesis. — A freira deu um sorriso no canto da boca. Mas, no seu íntimo, confirmou que aquele homem não tinha todos os parafusos na cabeça.
— Filho, eu vou ver para você. Espere um instante.
A freira entrou numa sala que ficava atrás do enorme altar da catedral. Segundos depois apareceu e chamou William. Ele foi até ela, que pediu para que ele entrasse. A sala era quadrada e grande. Ao lado esquerdo da entrada ficava uma estante com algumas imagens esculpidas e livros religiosos. Do lado direito duas poltronas e um confessionário. No centro da sala, havia uma mesa com uma cadeira para um visitante e, do outro lado do móvel, o padre o aguardava sentado em sua poltrona. Havia uma bíblia sobre a mesa de madeira maciça do modelo mais rústico que William imaginaria encontrar.
O padre, calvo e de óculos com armação discreta, sorriu para o visitante quase esfarrapado.
— Rapaz, você tem interesse numa leitura bíblica, me contou a irmã.
— Padre, desculpa interromper a sua reflexão. Mas preciso rapidamente abrir essa bíblia no livro de gênesis para tirar de mim uma aflição.
O padre não entendeu muito bem, mas achou, na sinceridade repleta de amor divino, que o homem ali presente queria uma palavra de Deus para tomar alguma decisão. Ofereceu a bíblia a William, arrastando-a sobre a mesa até próximo à cadeira do visitante. William sentou rapidamente e abriu o livro. Involuntariamente, naquele instante, enquanto folheava o livro sagrado, William rezou para que o que ele procurava estivesse ali. Àquela altura ele sabia que não havia chave alguma, mas talvez uma senha ou outra pista pudesse encontrar.
O livro que procurava era o primeiro, mas William passou página por página e não encontrou nada. Seu rosto se fechou em decepção e ele começou a folhear a bíblia rapidamente. Já tinha passado de gênesis e não via esperança de encontrar nada no meio daquelas páginas insossas. Mas a espessura das folhas da bíblia levou William até sua resposta. Em uma folheada a mais, ele achou o que procurava. No livro de Judite, que ele não sabia da existência, havia uma carta de baralho. O padre saltou-se da cadeira. A freira, que acompanhava a busca do homem de pé, colocou as mãos na boca num espanto. William sorriu numa espécie de alívio momentâneo. O arabesco azul brilhou em seus olhos e ele virou a carta.

Um rei de paus. Seu sorriso se apagou quando ele analisou o objeto e percebeu que nada estava escrito. 

(leia a Parte 1 e Parte 2)

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