Sem
fazer barulho, William pegou a dama de copas e observou. Desta vez havia algo
escrito na borda da carta ao lado do arabesco azul, às costas da dama, que
observava o rapaz com serenidade, enquanto o rosto de William transparecia a
dúvida e incredulidade. “Subway”, em pequena letra manuscrita com esferográfica
de ponta muito fina na cor preta.
—
Este psicopata está testando minha inteligência. — murmurou.
Precisava
partir dali antes que fosse visto e a polícia fosse chamada. Se tivesse que dar
explicações às autoridades desperdiçaria muito tempo e poderia colocar tudo a
perder. Abriu lentamente a porta do depósito e ouviu passos vindos da direção
da escada. Com um frio na espinha ele apoiou as costas contra a porta e
esperou. Ouviu os passos atrás de si, passando pela porta onde estava e
entrando na próxima, do outro lado do corredor. Abriu novamente e andou até a
escada. Encostado na parede observou escada abaixo. Ninguém subia e ele partiu
rápido, com passos silenciosos.
O
recepcionista continuava confortavelmente em sua poltrona, de modo que seria
fácil sua saída do prédio da prefeitura. Não fosse a urgência da operação,
William esboçaria a ideia de ficar ali por mais tempo. O ar condicionado era
refrescante e a visão que tinha de fora não era nada animadora. Passou pelo portão
ao lado da catraca, esgueirou-se pelo canto do balcão e saiu do prédio sem ser
visto. Aquela brincadeira armada pelo assassino não estava sendo legal. Já eram
duas da tarde quando ele se viu novamente no viaduto do chá. “Subway”. Dama de
copas. Mais um enigma que o fez pegar o telefone.
—
Vera, desculpe te atrapalhar mais uma vez, mas você é a pessoa mais indicada
para me ajudar. — dessa vez, William não conseguiu esconder a aflição por algo
que o perturbava.
—
Garoto, você está me deixando preocupada. Está tudo bem com a sua mãe? —
embora, assim como a mãe, William não costumasse acreditar nas previsões de
Vera, ele havia esquecido que a atividade como cartomante talvez lhe aguçasse
os sentidos.
—
Está tudo bem. Você me ajudou da última vez. Agora preciso que me fale um pouco
sobre a dama. A dama do baralho.
Vera
sabia não estava enganada. As dúvidas de William faziam parte de algo muito
sério que estava acontecendo e ela tinha convicção de que Sandra estava
envolvida. Não era comum ver William com a agitação que se encontrava naquele
momento. Tentava achar na voz do rapaz algo que esclarecesse suas ideias. Ela
não dormiria sem saber o que estava havendo.
—
William, não sei onde anda se metendo, mas é bom que me diga logo. Não gosto de
enigmas e talvez possa te ajudar melhor caso se abra comigo. — Ela ainda não
sabia que William também odiava enigmas, sobretudo aquele.
—
Você vai entender. Mas preciso primeiro que me diga o que representa a dama de
copas. — William tremia. Enquanto falava ao telefone, enxugava o suor na testa
e girava de um lado para o outro, como alguém que tivesse perdido e procurando
a pessoa com a qual iria ao encontro.
—
A dama é a carta que vem imediatamente após o valete, que você me questionou
mais cedo. Ela significa a Rainha, que está acima do empregado. A dama de copas
historicamente é ligada à Judite, uma personagem da bíblia, do livro de
Gênesis... — antes que Vera continuasse William a interrompeu.
—
Está bem, Vera. Não preciso de mais, já sei o que fazer. Obrigado.
Mal
se despediu da sua cúmplice e desligou o telefone. Aliado à explicação de Vera
com o que estava escrito na carta de baralho, William sabia o que fazer.
“Subway”. O recado poderia ser confundido, mas William já estava muito esperto
e concentrado para entender a pegadinha do psicopata que prendera Sara e
Sandra. William chamou um táxi e sem mais delongas pediu para que o levasse até
a catedral a Sé, que fica exatamente sobre a estação de metrô.
O
monumento que era a catedral impressionava. William passara por ali inúmeras
vezes, mas nunca reparou na riqueza daquela arquitetura e nem o que estava à
sua volta. A praça na frente da igreja, àquela hora, estava cheia. Transeuntes
circulavam com pressa e iam para todos os lados. Alguns homens com placas
anunciavam venda de ouro e idosos sentados em bancos jogavam migalhas de pães
aos pombos, que chegavam aos montes. William passava dentre as pessoas e subia
as escadarias da igreja quando foi abordado por um homem que pedia dinheiro.
Ignorou o sujeito e entrou. Havia silêncio quase absoluto, quebrado apenas pelo
barulho que vinha de fora. No corredor de bancos à direita duas mulheres faziam
sua oração. À esquerda, uma freira estava ajoelhada, com a cabeça erguida e o
olhar fixo no altar imponente à sua frente. William ainda não sabia como e onde
procurar o objeto que buscava. Na sua cabeça, imaginara que em algum canto
havia a chave que libertaria a namorada e a mãe do inferno criado pelo homem.
“Judite
é do livro de gênesis”. William se concentrava nas palavras de Vera. Passou por
todos os pilares internos da igreja e observou cada passo de Jesus na via
sacra. Nada havia sobre gênesis que o esclarecesse. Subiu até o altar na busca
por uma bíblia. A freira que fazia sua oração em um dos bancos franziu o cenho,
achando estranho a pressa e a procura daquele cidadão de trajes sociais, mas
nada asseado.
—
Procura por alguém, rapazinho? — William foi surpreendido pela irmã.
—
Ãh...na verdade eu procuro por algum objeto. — A freira voltou a arquear as
sobrancelhas, com expressão de desentendida. — Irmã, eu procuro por algo que se
eu disser a senhora vai achar que eu estou louco.
—
Em quê posso ajuda-lo?
—
Preciso localizar uma bíblia que fique disponível para o público. Isso existe
aqui na catedral?
—
Disponível o tempo todo? Não. A bíblia mais acessível é a que o padre usa na
santa missa. Apenas quem trabalha na igreja e o próprio padre a utilizam.
—
Pode me levar até ela?
—
Qual o seu anseio?
—
Preciso ler o livro do gênesis. — A freira deu um sorriso no canto da boca.
Mas, no seu íntimo, confirmou que aquele homem não tinha todos os parafusos na
cabeça.
—
Filho, eu vou ver para você. Espere um instante.
A
freira entrou numa sala que ficava atrás do enorme altar da catedral. Segundos
depois apareceu e chamou William. Ele foi até ela, que pediu para que ele
entrasse. A sala era quadrada e grande. Ao lado esquerdo da entrada ficava uma
estante com algumas imagens esculpidas e livros religiosos. Do lado direito
duas poltronas e um confessionário. No centro da sala, havia uma mesa com uma
cadeira para um visitante e, do outro lado do móvel, o padre o aguardava
sentado em sua poltrona. Havia uma bíblia sobre a mesa de madeira maciça do
modelo mais rústico que William imaginaria encontrar.
O
padre, calvo e de óculos com armação discreta, sorriu para o visitante quase
esfarrapado.
—
Rapaz, você tem interesse numa leitura bíblica, me contou a irmã.
—
Padre, desculpa interromper a sua reflexão. Mas preciso rapidamente abrir essa
bíblia no livro de gênesis para tirar de mim uma aflição.
O
padre não entendeu muito bem, mas achou, na sinceridade repleta de amor divino,
que o homem ali presente queria uma palavra de Deus para tomar alguma decisão.
Ofereceu a bíblia a William, arrastando-a sobre a mesa até próximo à cadeira do
visitante. William sentou rapidamente e abriu o livro. Involuntariamente,
naquele instante, enquanto folheava o livro sagrado, William rezou para que o
que ele procurava estivesse ali. Àquela altura ele sabia que não havia chave
alguma, mas talvez uma senha ou outra pista pudesse encontrar.
O
livro que procurava era o primeiro, mas William passou página por página e não
encontrou nada. Seu rosto se fechou em decepção e ele começou a folhear a
bíblia rapidamente. Já tinha passado de gênesis e não via esperança de
encontrar nada no meio daquelas páginas insossas. Mas a espessura das folhas da
bíblia levou William até sua resposta. Em uma folheada a mais, ele achou o que
procurava. No livro de Judite, que ele não sabia da existência, havia uma carta
de baralho. O padre saltou-se da cadeira. A freira, que acompanhava a busca do
homem de pé, colocou as mãos na boca num espanto. William sorriu numa espécie
de alívio momentâneo. O arabesco azul brilhou em seus olhos e ele virou a
carta.

Nenhum comentário:
Postar um comentário