Na
face do valete de espadas tinha algo escrito na beirada branca. “Casa grande”.
William ficou confuso, não entendeu nada. Foi até a cozinha pegou a maior faca
que tinha na gaveta do gabinete, enfiou numa capa protetora e escondeu entre a
calça e a camisa. Não sabia o que encontraria na busca pelo fim desta loucura.
Mesmo à hora do almoço, não sentia fome alguma, o estômago se embrulhava diante
da situação inimaginável a qual estava passando. “Casa grande”.
Ele
pensou por alguns segundos. Ao fim da rua de sua casa tinha uma casa, o esboço
de uma mansão, que havia sido abandonada por seu proprietário há dois anos,
parando sua construção. Correu para lá. Teve de pular o portão, que estava
trancado à corrente. Observou para ver se ninguém o observava e entrou. Lá
dentro, apenas poeira tomava conta do piso de concreto e alguns materiais de
construção nos cantos das paredes inacabadas. Procurou por toda a parte. Subiu
para o andar de cima e nada encontrou. William teve vontade de chorar, pensava
em Sara pregada à parede e na mãe, sedada e completamente presa à cama da
namorada. Pensou estar sonhando, lembrou-se de sua infância, dos passeios com a
mãe, da adolescência e quando conheceu Sara, no show dos Stones no Rio de
Janeiro.
Saiu
da casa, a pista não era essa. Aquele psicopata não estava para brincadeira. Já
havia passado trinta minutos do momento em que saíra da casa de Sara. Naquele
instante, pouco mais de seis horas separava a casa de pó e as mulheres de
cadáveres. Como um estalo em sua mente, William lembrou-se de Vera, amiga de
sua mãe que lia futuro nas cartas. Vera frequentava a casa dos Krahmer há
muitos anos e tinha um afeto por William. Ele a achava um pouco estranha e,
pensando bem, ela era bem maluca e era isso que atraía sua mãe para perto da
mulher. A mãe adorava suas maluquices e, no fundo, não acreditava muito nas
suas leituras. Mas nunca expressou isso na frente de Vera, era apenas uma
percepção de William. Discou o número.
—
Vera, é o William. Tudo bem? — ele tentou não deixar o nervosismo tomar conta
da voz, pensou que colocar Vera na história não ajudaria a solucionar o
problema.
—
Oi querido. Precisa de algo?
—
Sim. Gostaria que me esclarecesse uma coisa sobre as cartas?
—
Oh! Eu posso passar na sua casa mais tarde para fazer a leitura para você. —
disse Vera, solícita.
—
Não, Vera. É só uma dúvida. Queria que você me falasse sobre o valete de
espadas. Há algo específico nesta carta? — Vera demorou um instante a
responder. Certamente desconfiara que algum interesse havia por trás daquela
pergunta estranha. William fechou os olhos torcendo para que ela não
perguntasse o motivo do questionamento. Ele não havia treinado essa
possibilidade.
—
Como assim? Você quer saber o que a carta significa?
—
Pode ser. Digo, quando sai esta carta nas suas leituras, o que significa? —
segundos depois, William se arrependeu da pergunta.
—
Depende, William. A leitura é uma sequência de cartas. Uma sozinha não
significa nada. O valete atrelado a outros valores é que me esclarece as
coisas. Eu não entendo a sua curiosidade.
—
Eu preciso saber se esta carta tem algum significado por si só. Me ajude, estou
com um enigma a resolver. — William começava a se abrir, mas não gostaria de
dizer qual era o enigma e se segurava para deixar o mais escondido entre
palavras que seria capaz fazer.
—
O valete é a menor entre as letras do baralho, geralmente. Fica abaixo da dama
e do rei, ela representa o subordinado, o empregado. Essa é sua origem. — Isso
não esclarecia muita coisa na cabeça de William. Ele não tinha empregada
nenhuma. Vera prosseguiu — O valete de espadas representa no baralho o Holger,
um dinamarquês que na mitologia é visto como herói. Mas eu não estou entendendo
nada sobre sua curiosidade.
—
Obrigado, Vera. Ajudou bastante. Depois te explico com mais detalhes. —
Despediu-se e desligou o telefone.
Parado,
no meio da rua, William refletia sobre o que tinha descoberto. “O valete
representa o empregado”. Pegou a carta, que estava no bolso, e observou. “Casa
grande”. Empregado e casa grande. Não havia outro lugar. William chamou um
táxi. “Por favor, me leve até a prefeitura”.
Já
passava da uma da tarde. Pelas contas dele, a bomba explodiria às 7 e meia da
noite, aproximadamente. O trânsito no centro da cidade atrapalhou um pouco.
William limpava o suor da testa com a manga da camisa de botões que vestia. A
camisa já estava só o farrapo de tão molhada. O nervosismo acrescia ao calor
que sentia pela temperatura que fazia naquela quinta-feira. O transito parou na
Praça Ramos de Azevedo e ele resolveu descer ali mesmo. Correu até a recepção
da prefeitura, lugar que ele julgou ser a “casa grande” do valete. “O valete
representa o empregado”. Isso martelava em sua cabeça o tempo inteiro. Foi até
um funcionário que fazia a limpeza da recepção do prédio.
—
Amigo, por favor, por um acaso alguém te entregou uma carta de baralho hoje?
O
rapaz olhou para o rosto de William, a pele morena molhada pelo suor, o cabelo
meio aparado mostrava um desajeito de quem estivera correndo. O rapaz achou a
pergunta sem cabimento nenhum.
—
Moço, eu estou aqui na recepção há pouco tempo, mas ninguém me deu nada.
—
Como eu faço para ir até o local onde vocês guardam seus apetrechos de limpeza?
— William perguntou, mas aguardava resposta diferente da que ouviu.
—
Fica no primeiro andar, mas o senhor não pode subir até lá. É restrito a
funcionários. Além disso, a gente guarda os pertences pessoais lá, não pode
entrar qualquer pessoa. Nem sei quem é o senhor. — o rapaz tinha olhar de
estranheza e William percebeu que não tiraria ajuda dali. Então resolveu usar
métodos não convencionais para acessar o local. Agradeceu o rapaz e saiu do
prédio.
Não
se afastou, ficou na coluna que separa a janela lateral da porta de entrada.
Observava o rapaz da limpeza e da recepção. Para chegar até o elevador ou a
escada, ele teria de passar por uma triagem e fazer um cadastro no sistema da
prefeitura. Mas não teria o acesso liberado, pois ninguém o aguardava em todo o
prédio. Resolveu esperar mais um pouco. O faxineiro entrou no elevador e ele
observou que a capsula levava o rapaz até o quarto andar. O primeiro poderia
estar livre. O recepcionista estava sentado em uma cadeira que o deixava com a
visão prejudicada do local. O balcão era alto e o homem só poderia enxergar na
altura da pedra de mármore, ou seja, mais de um metro acima do assoalho.
Não
havia ali nenhum guarda assegurando a catraca. Ao lado das duas catracas de
acesso havia uma pequena porta de vidro, provavelmente para passagens em
momentos que a catraca estivesse fora de operação. William entrou agachando-se,
fora da visão do recepcionista — rezou para que ele não se levantasse de sua
confortável cadeira. Chegou até o portão de acesso ao lado das catracas e
percebeu que estava aberto. Passou para o outro lado e não quis arriscar
esperar o elevador. Pegou o acesso às escadas. Chegou ao primeiro andar. Um
corredor levava a leste e oeste do prédio. Portas de madeira eram separadas a
cada quatro metros. Alguma daquelas portas dava acesso à sala destinada aos funcionários
da limpeza. “O valete representa o empregado”. Pegou o corredor para o lado
esquerdo. Bateu na primeira porta e ninguém respondeu, abriu devagar a passagem
e percebeu que era um escritório e estava vazio, fechou a porta. Na segunda
porta alguém respondeu “pois não?”. Ele não voltou a bater e seguiu.
Na
terceira porta ninguém respondeu. William entrou. Duas prateleiras na parede do
lado direito da pequena sala de depósito. De frente para ele tinha um armário
branco com quatro portas. Do lado esquerdo da sala havia uma pilha com três
caixas de papelão. Produtos de limpeza estavam espalhados pelos cantos do
cubículo, que mal permitia que pessoas se movimentassem. William observou as
prateleiras, mas achou apenas panos de chão, flanelas e caixas preenchidas com
sabão e escovas. Abriu as portas de baixo do armário, mas apenas garrafas
plásticas com produtos químicos e duas pás. Quando abriu as portas superiores,
uma sensação gelada subiu pela espinha e William mais uma vez sentiu,
involuntariamente, o coração bater dentro do peito.
Entre
duas caixas com papéis higiênicos, uma carta de baralho estava estrategicamente
colocada em ângulo perfeito e harmonioso com a prateleira do armário. Uma dama
de copas.
(Leia a parte 1 clicando aqui)
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