segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Carteado (Parte 2)

Na face do valete de espadas tinha algo escrito na beirada branca. “Casa grande”. William ficou confuso, não entendeu nada. Foi até a cozinha pegou a maior faca que tinha na gaveta do gabinete, enfiou numa capa protetora e escondeu entre a calça e a camisa. Não sabia o que encontraria na busca pelo fim desta loucura. Mesmo à hora do almoço, não sentia fome alguma, o estômago se embrulhava diante da situação inimaginável a qual estava passando. “Casa grande”.
Ele pensou por alguns segundos. Ao fim da rua de sua casa tinha uma casa, o esboço de uma mansão, que havia sido abandonada por seu proprietário há dois anos, parando sua construção. Correu para lá. Teve de pular o portão, que estava trancado à corrente. Observou para ver se ninguém o observava e entrou. Lá dentro, apenas poeira tomava conta do piso de concreto e alguns materiais de construção nos cantos das paredes inacabadas. Procurou por toda a parte. Subiu para o andar de cima e nada encontrou. William teve vontade de chorar, pensava em Sara pregada à parede e na mãe, sedada e completamente presa à cama da namorada. Pensou estar sonhando, lembrou-se de sua infância, dos passeios com a mãe, da adolescência e quando conheceu Sara, no show dos Stones no Rio de Janeiro.


Saiu da casa, a pista não era essa. Aquele psicopata não estava para brincadeira. Já havia passado trinta minutos do momento em que saíra da casa de Sara. Naquele instante, pouco mais de seis horas separava a casa de pó e as mulheres de cadáveres. Como um estalo em sua mente, William lembrou-se de Vera, amiga de sua mãe que lia futuro nas cartas. Vera frequentava a casa dos Krahmer há muitos anos e tinha um afeto por William. Ele a achava um pouco estranha e, pensando bem, ela era bem maluca e era isso que atraía sua mãe para perto da mulher. A mãe adorava suas maluquices e, no fundo, não acreditava muito nas suas leituras. Mas nunca expressou isso na frente de Vera, era apenas uma percepção de William. Discou o número.
— Vera, é o William. Tudo bem? — ele tentou não deixar o nervosismo tomar conta da voz, pensou que colocar Vera na história não ajudaria a solucionar o problema.
— Oi querido. Precisa de algo?
— Sim. Gostaria que me esclarecesse uma coisa sobre as cartas?
— Oh! Eu posso passar na sua casa mais tarde para fazer a leitura para você. — disse Vera, solícita.
— Não, Vera. É só uma dúvida. Queria que você me falasse sobre o valete de espadas. Há algo específico nesta carta? — Vera demorou um instante a responder. Certamente desconfiara que algum interesse havia por trás daquela pergunta estranha. William fechou os olhos torcendo para que ela não perguntasse o motivo do questionamento. Ele não havia treinado essa possibilidade.
— Como assim? Você quer saber o que a carta significa?
— Pode ser. Digo, quando sai esta carta nas suas leituras, o que significa? — segundos depois, William se arrependeu da pergunta.
— Depende, William. A leitura é uma sequência de cartas. Uma sozinha não significa nada. O valete atrelado a outros valores é que me esclarece as coisas. Eu não entendo a sua curiosidade.
— Eu preciso saber se esta carta tem algum significado por si só. Me ajude, estou com um enigma a resolver. — William começava a se abrir, mas não gostaria de dizer qual era o enigma e se segurava para deixar o mais escondido entre palavras que seria capaz fazer.
— O valete é a menor entre as letras do baralho, geralmente. Fica abaixo da dama e do rei, ela representa o subordinado, o empregado. Essa é sua origem. — Isso não esclarecia muita coisa na cabeça de William. Ele não tinha empregada nenhuma. Vera prosseguiu — O valete de espadas representa no baralho o Holger, um dinamarquês que na mitologia é visto como herói. Mas eu não estou entendendo nada sobre sua curiosidade.
— Obrigado, Vera. Ajudou bastante. Depois te explico com mais detalhes. — Despediu-se e desligou o telefone.
Parado, no meio da rua, William refletia sobre o que tinha descoberto. “O valete representa o empregado”. Pegou a carta, que estava no bolso, e observou. “Casa grande”. Empregado e casa grande. Não havia outro lugar. William chamou um táxi. “Por favor, me leve até a prefeitura”.
Já passava da uma da tarde. Pelas contas dele, a bomba explodiria às 7 e meia da noite, aproximadamente. O trânsito no centro da cidade atrapalhou um pouco. William limpava o suor da testa com a manga da camisa de botões que vestia. A camisa já estava só o farrapo de tão molhada. O nervosismo acrescia ao calor que sentia pela temperatura que fazia naquela quinta-feira. O transito parou na Praça Ramos de Azevedo e ele resolveu descer ali mesmo. Correu até a recepção da prefeitura, lugar que ele julgou ser a “casa grande” do valete. “O valete representa o empregado”. Isso martelava em sua cabeça o tempo inteiro. Foi até um funcionário que fazia a limpeza da recepção do prédio.
— Amigo, por favor, por um acaso alguém te entregou uma carta de baralho hoje?
O rapaz olhou para o rosto de William, a pele morena molhada pelo suor, o cabelo meio aparado mostrava um desajeito de quem estivera correndo. O rapaz achou a pergunta sem cabimento nenhum.
— Moço, eu estou aqui na recepção há pouco tempo, mas ninguém me deu nada.
— Como eu faço para ir até o local onde vocês guardam seus apetrechos de limpeza? — William perguntou, mas aguardava resposta diferente da que ouviu.
— Fica no primeiro andar, mas o senhor não pode subir até lá. É restrito a funcionários. Além disso, a gente guarda os pertences pessoais lá, não pode entrar qualquer pessoa. Nem sei quem é o senhor. — o rapaz tinha olhar de estranheza e William percebeu que não tiraria ajuda dali. Então resolveu usar métodos não convencionais para acessar o local. Agradeceu o rapaz e saiu do prédio.
Não se afastou, ficou na coluna que separa a janela lateral da porta de entrada. Observava o rapaz da limpeza e da recepção. Para chegar até o elevador ou a escada, ele teria de passar por uma triagem e fazer um cadastro no sistema da prefeitura. Mas não teria o acesso liberado, pois ninguém o aguardava em todo o prédio. Resolveu esperar mais um pouco. O faxineiro entrou no elevador e ele observou que a capsula levava o rapaz até o quarto andar. O primeiro poderia estar livre. O recepcionista estava sentado em uma cadeira que o deixava com a visão prejudicada do local. O balcão era alto e o homem só poderia enxergar na altura da pedra de mármore, ou seja, mais de um metro acima do assoalho.
Não havia ali nenhum guarda assegurando a catraca. Ao lado das duas catracas de acesso havia uma pequena porta de vidro, provavelmente para passagens em momentos que a catraca estivesse fora de operação. William entrou agachando-se, fora da visão do recepcionista — rezou para que ele não se levantasse de sua confortável cadeira. Chegou até o portão de acesso ao lado das catracas e percebeu que estava aberto. Passou para o outro lado e não quis arriscar esperar o elevador. Pegou o acesso às escadas. Chegou ao primeiro andar. Um corredor levava a leste e oeste do prédio. Portas de madeira eram separadas a cada quatro metros. Alguma daquelas portas dava acesso à sala destinada aos funcionários da limpeza. “O valete representa o empregado”. Pegou o corredor para o lado esquerdo. Bateu na primeira porta e ninguém respondeu, abriu devagar a passagem e percebeu que era um escritório e estava vazio, fechou a porta. Na segunda porta alguém respondeu “pois não?”. Ele não voltou a bater e seguiu.
Na terceira porta ninguém respondeu. William entrou. Duas prateleiras na parede do lado direito da pequena sala de depósito. De frente para ele tinha um armário branco com quatro portas. Do lado esquerdo da sala havia uma pilha com três caixas de papelão. Produtos de limpeza estavam espalhados pelos cantos do cubículo, que mal permitia que pessoas se movimentassem. William observou as prateleiras, mas achou apenas panos de chão, flanelas e caixas preenchidas com sabão e escovas. Abriu as portas de baixo do armário, mas apenas garrafas plásticas com produtos químicos e duas pás. Quando abriu as portas superiores, uma sensação gelada subiu pela espinha e William mais uma vez sentiu, involuntariamente, o coração bater dentro do peito.
Entre duas caixas com papéis higiênicos, uma carta de baralho estava estrategicamente colocada em ângulo perfeito e harmonioso com a prateleira do armário. Uma dama de copas.

(Leia a parte 1 clicando aqui)

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