quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Carteado (Parte 1)

Aquele mês de maio era atípico na capital paulista. Fazia 32 graus às 11 horas da manhã no centro da cidade. Há alguns anos William não sentia tanto calor naquela época do ano. Mesmo sob o ar condicionado da agência de viagens onde trabalhava ele não se sentia satisfeito. A porta sempre aberta para a entrada de clientes atrapalhava a estabilização da temperatura dentro da sala. Sentia que não seria fácil aquela quinta-feira, sobretudo porque, saindo dali, ele ainda enfrentaria uma condução abastecida de calor humano e sua casa protegida apenas por um ventilador velho da mãe. “Até que não está tão ruim agora”, pensava.
William achava que aquele calor afastava os clientes. Ele dependia da porcentagem de vendas para ganhar o dinheiro suficiente para quitar as contas do mês e naquele dia a movimentação era fraca. Até àquela hora só atendera um cliente, que, segundo a aguçada impressão de William, não havia ficado muito satisfeito com o orçamento que recebeu. Ao meio dia ele sairia para o almoço. Recebeu uma mensagem de Sara: “Amor, por favor, venha até o café no horário do almoço, preciso falar com você. É importante. Te amo”. William e Sara namoravam há quase dois anos e o noivado já estava em pauta em passeios corriqueiros aos domingos. Sara trabalhava como atendente num café próximo ao trabalho de Willians, mas ela nunca havia pedido para que ele fosse até lá no almoço, mesmo por que o tempo de lanche é curto e o bom senso se fazia presente na relação.
“É importante”. O que seria de tão importante? A urgência na mensagem assustou um pouco William e a apreensão fez com que o tempo passasse mais lentamente. Pontualmente, William colocou o computador em descanso e partiu em disparada até o café. Quinze minutos de caminhada separavam a agência, na região da república, do café, ao lado da catedral da Sé. Quando William entrou no café não viu Sara. Apenas Camila, sua colega, atendia no local.
— Oi, Camila. Você viu a Sara?
— Olá. Eu não a vejo desde as dez horas. Ela saiu da loja e ainda não voltou. — respondeu Camila.
— Ela não disse para onde ia?
— Falou apenas que já voltava e saiu. — Camila respondeu e saiu em direção a maquina de expresso.
William foi invadido por uma preocupação instintiva. Retirou o celular do bolso e discou o numero de Sara. Ninguém atendeu na primeira chamada. Ligou mais uma vez. Nada. Olhou o aplicativo de mensagens e Sara não visualizava os recados desde as onze e meia. Ela morava não muito longe dali, na região da Bela Vista. Foi para lá que William partiu, em passos rápidos.
Já era de casa, então não apertou a campainha. O portão estava aberto e ele entrou. O cadeado destrancado denunciava a presença de Sara. Ela morava sozinha e não deixaria o portão aberto se não estivesse. Foi pelo corredor até a porta da cozinha, que ficava nos fundos. As janelas e portas da sala, que vinham primeiro, estavam trancadas. Ele entrou pela cozinha e foi até a sala de estar. Na porta, parou. A imagem que viu estarreceu seus sentidos e ações. O coração acelerou de uma forma inédita. Não precisara colocar a mão no peito, ele ouvia e sentia o coração pulsar de forma rápida dentro de si. Teve sensações de desmaio e se segurou.
Na sua frente, na parede onde ficava um quadro, sem janelas, estava Sara, seminua. Quase como crucificada. Os braços esticados como numa cruz, mas as pernas também estavam abertas no mesmo ângulo dos braços, a meio metro do chão. Algemas atreladas a um gancho na parede seguravam o peso de Sara, que não sobrecarregavam muito os objetos. Ela era franzina e não haveria necessidade de material tão rígido para segurá-la. Nas algemas, fios espessos atrelavam seus pulsos a uma caixa no chão, encostada na parede abaixo de seu corpo. As pernas, presas da mesma forma, também eram conectadas a esta caixa, semelhante a uma bateria de automóvel. A cintura era envolvida por uma cinta de couro, que evitava que ela fizesse qualquer movimento. Tinha uma mordaça, também de couro, à boca, com fios conectados à mesma caixa. Sara estava consciente, os olhos arregalados, como quem pedia por Deus para sair daquela situação. William olhou para a caixa de onde saíam os fios e viu um pequeno visor. Números piscavam em vermelho e ele sentiu um arrepio subir pelas pernas até o couro cabeludo. Um relógio digital na regressiva.
Sobre a mesa de centro da sala organizada tinha um bilhete e um gravador ligado. William percebeu o que aquilo queria dizer e, desesperado, pegou o bilhete. “Antes de qualquer ação, se eu fosse você, ouviria a mensagem”, dizia o bilhete. Sara gemia coisas inidentificáveis.



— Calma, meu amor, eu vou te tirar daí. — William dizia sem nenhuma certeza. Sem pestanejar, deu play no gravador. Uma voz metálica, certamente modificada em algum software começou a falar. William e Sara ouviram atentamente.
Olá, queridos. Entendo que estão assustados, não? Ora, não é para menos. Fiquem atentos às minhas orientações. Eu não vim à toa. Madalena me atingiu severamente e eu resolvi agir. Alcancei o seu calcanhar de Aquiles: a sua filhinha (a voz riu medonhamente). Ah! William, se você quiser salvar a sua mãe, é bom correr. Ela está no quarto e não vai acordar tão cedo. Também não há modo de salvá-la sem que Sara morra. Todos os objetos que prendem Sara à parede estão diretamente ligados à bomba. Qualquer movimento de soltura ativa o dispositivo interno da caixa e tudo vai pelos ares. Aliás, os vizinhos ao lado também não gostarão nada se isso acontecer e vão ficar chateados com você, William. Imagino que o relógio agora não esteja com mais de 7 horas para a explosão. Uma pena, você terá pouco tempo para achar a chave que desativa o explosivo e solta suas amadas. À propósito, a única forma de desativar a bomba é a chave, que está escondida. A equipe antibombas da polícia não vai resolver o seu problema. Qualquer movimento irregular na caixa e booom (a voz riu mais uma vez, satisfeita). Corra, William. Vou te dar apenas uma dica: comece por sua casa, deve ter uma pista lá, um passarinho me contou. Estarei de longe, aguardando o noticiário da TV”. Um chiado ensurdecedor saiu do aparelho e William o desligou.
Ele sabia que o relacionamento de sua sogra, Madalena, com seu ex-marido não era dos melhores, mas não imaginou que ele pudesse ser capaz de colocar a vida da própria filha em risco. Sara chorava com a mordaça na boca e gemia ainda mais. William correu até o quarto, cômodo ao lado, o mais próximo da garagem. O maníaco não blefou. Ao entrar no dormitório, William sentiu o desespero aumentar. Sandra, sua mãe, estava deitada na cama sobre um lençol branco reluzente. Na mesma posição de Sara, braços e pernas arreganhados, apenas de calcinha e sutiã. Seus braços presos com algemas atrelados a um gancho na parede da cabeceira. Seus pés presos a correntes que desciam até o chão e terminavam nas argolas de aço que estavam ligadas a outros dois ganchos fixos ao chão, embaixo da cama. O concreto que prendia os ganchos ao solo estava completamente rígido, como se tivesse sido colocados ali há algum tempo. O psicopata planejara a ação. Mas William não tinha tempo para pensar na engenhosidade da cabeça do homem, tinha de agir. À sua mãe nenhuma bomba estava presa, mas não precisaria. A explosão do objeto da sala levaria a casa inteira para os ares, junto com as pessoas que lá se encontrariam. Retirar a mãe dali, como já havia adiantado a voz maligna, seria besteira. Mesmo que conseguisse, William não teria tempo hábil para desarmar o explosivo que mataria Sara instantaneamente.
Seguiu a dica ouvida no gravador, avisou Sara e saiu em disparada. Chamou um táxi e passou o endereço de sua casa. A cabeça latejava como um bate estaca. Chegou em casa e o portão estava destrancado. Entrou correndo pela sala e não viu nada. A respiração estava ofegante. Foi até a cozinha. A mesa de madeira no centro do cômodo não tinha toalha alguma, o que era incomum. Sobre ela, apenas um objeto jazia e chamou a atenção de William. Aproximou-se. Uma carta de baralho estava com a face virada para baixo. O arabesco azul e bonito destacava-se sob o olhar de William. Ele pegou a carta, virou e pôs sobre a mesa.

Era um valete de espadas.

Um comentário:

  1. Excelente texto, caro Sérgio!
    Ansioso para o que acontece a seguir...

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