quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Destino traçado

Aquela era uma missão audaciosa. Giovanni sabia disso através do fato de que o local que deveria tomar aquele carro não era um lugar qualquer e o veículo, demasiado caro, indicava ser de gente importante. Por isso, Gio, como era conhecido pelos amigos, cuidava de suas observações cautelosamente e não queria perder nenhum detalhe. Há uma semana ele observava os movimentos daquele carro e decidira que o dia de amanhã seria o escolhido para o delito.
Giovanni, apesar de ser ladrão de automóveis por encomenda há mais de cinco anos, sofria cobrança de sua mãe, Dolores. Ela não saía do pé de Gio, exceto quando ele saía para trabalhar. Era atendente em uma mercearia na zona sul da cidade. Trabalhava até duas da tarde e depois saía para cometer os seus crimes. Para Dolores, Giovanni trabalhava até às seis da tarde, o que justificava sua chegada depois das oito horas, tendo em vista a distância de Santo Amaro a Penha, onde moravam.
Giovanni vivia com um trauma que não deixava sua cabeça, talvez por isso não tivesse fé, mas era esperançoso no que chamava de “vitória na vida”. Seu sonho era dar uma casa melhor para sua mãe adotiva e sair do estado. Gio fora adotado por Dolores quando tinha três anos de idade, depois de ter sido abandonado em um orfanato. Segundo Dolores, Giovanni foi tirado de seu pai por uma quadrilha que almejava dinheiro pelo seu resgate. Sem sucesso, deixaram a criança na porta do orfanato e foram embora. A mãe de Gio havia morrido em seu parto e sua criação foi dada a cargo de uma babá, que ficava 24 horas com Giovanni, enquanto o pai trabalhava, até seu roubo por bandidos.
Agora com 24 anos, Giovanni dava valor àquela que lhe tirou das trevas para oferecer família e um teto. Seu pai jamais aparecera, embora Giovanni tivesse a curiosidade de saber a verdade e o destino daquele “pobre homem”, como chamava sua mãe.
Aquela quinta-feira amanheceu nublada na capital. Gio se levantou, tomou seu café em plena concentração no trabalho que deveria concluir no final da tarde. Foi à mercearia e trabalhou mal, desastrado e confuso. À hora da saída, Giovanni foi em direção à Bela Vista, centro da cidade. A mureta do estacionamento dos fundos da câmara dos vereadores seria seu esconderijo até às quatro da tarde, hora de seu bote. Esteve naquele lugar durante dias e se perguntava qual o poder do homem proprietário daquele Azera preto. Seu patrão fora bem claro.
— Eu quero aquele carro intacto, sem nenhum arranhão. Eu confio no seu trabalho, não me venha com outro modelo. Eu quero aquele.
Giovanni se perguntara por que daquela insistência naquela placa. Modelos como este acharia em toda a cidade, mas o chefe queria aquele. Mas Giovanni não era pago — e muito bem pago — para questionar. O trabalho estava a seu cargo, à sua confiança e ele cumpriria. Ali estava, pronto a dar o bote.  O veículo, como em todos os dias, àquela hora ainda não era visto no pátio. Mas não demoraria a chegar, já estava a caminho. Pelos estudos de Giovanni, já desceria a rua da consolação naquela hora.
Quando o carro estacionou na sua vaga corriqueira, saíram dele três homens. O motorista e o primeiro passageiro, ambos com um terno preto de corte simples, com gravata vermelha. O passageiro, grande como um guarda-roupa, usava óculos de sol, na frente de uma pele morena e cabelos bem aparados. Da porta de trás saiu um homem que deveria ter entre 50 e 60 anos, cabelos já grisalhos e bem penteados. Usava um terno chumbo de corte italiano, com gravata prata muito bem asseada.  Há cinco metros da traseira do Azera, Giovanni observava calado. Os três homens entraram no prédio, dali não sairiam pelo menos até às cinco da tarde.
O pátio ficou vazio, o infrator foi até o carro, esgueirando-se para não ser percebido. O automóvel ao lado ajudava na camuflagem. Tirou do bolso um molho de chaves e inseriu uma delas na maçaneta do veículo. Em poucos segundos, Giovanni se viu dentro do Azera. A partir dali, a carreira de cinco anos de Gio se encarregaria do resto. Mas o rosto de Giovanni ficou pálido quando percebeu vindo à direção do carro um dos homens que dele saíra há uns 5 minutos, o maior, de óculos de sol. Ele não teve outra escolha, o patrão foi direto: “eu quero aquele modelo”. Giovanni deu partida, o ronco do motor chamou a atenção do homem, que correu em sua direção. Ele gritava palavras de ordem, que Gio não fez nenhuma questão de ouvir. Arrancou, fazendo o carro cantar os pneus em direção à saída do estacionamento. Na mesma hora em que outros 3 homens saíram do prédio correndo, entraram em um Golf e saíram em disparada.
O carro automático seguia na direção oeste da cidade, desviando-se das faixas mais congestionadas para enganar o trânsito e seus perseguidores. Os semáforos não existiam para Gio e ele ficou assustado com aquela fuga. Em seus cinco anos de trabalho para o patrão, Gio jamais precisara fugir daquela forma. Afinal, pensou, como conseguiria se esquivar daquela perseguição sem consequências? Deveria haver uma estratégia para que se escondesse e era por isso que ia em direção oeste, longe do galpão de carros roubados do patrão, que ficava em Santana, zona norte da capital. Pegou o telefone.
— Fernando, preciso de sua ajuda.
— Manda ae, parceiro.
Fernando, amigo de infância de Gio, morava em uma casa que tinha uma garagem grande e totalmente fechada. Uma espécie de pequeno galpão, que cabia cinco carros, na região da barra funda. Era para lá que Gio dirigia.
— Me menti numa enrascada. Estou em meio a um trabalho que não está acontecendo como gostaria. Preciso que você libere um espaço na sua garagem.
— Caralho! No que você se meteu moleque?
— É um esquema aí, te conto com mais calma. Pode deixar o portão aberto?
— Estou de saída, mas vou deixar aberto se você não for demorar muito. Você sabe, não se pode deixar a casa marcando nessa cidade, que...
— Está bem, cara, deixa aberto que eu já estou perto. Pode fazer sua correria que eu me viro.
Desligou o telefone e fez o caminho mais controverso até aquela região, passando por ruas estreitas e intercalando com grandes avenidas, com semáforos. Seu objetivo era ultrapassar veículos e deixar os inimigos presos. Eles vinham na cola de Gio, 20 metros atrás. Seu plano estava dando certo e a cada quilômetro percorrido o golf se afastava um pouco mais. Quando acessou a rua da casa do Fernando viu pelo retrovisor que o golf não o acompanhou. Entrou na garagem, desceu rápido do carro e baixou a porta. Ficou por um minuto encostado com as costas no umbral. A respiração era ofegante, fechou os olhos e pensou na loucura pela qual tinha acabado de passar. Não ouvia ruídos vindos do lado de fora. Quando pensou estar longe do perigo, fechou os olhos. A pancada na sua tranquilidade foi súbita e o coração de Gio disparou a ponto dele senti-lo sem pôr a mão no peito. A porta da garagem se abriu com um solavanco para cima e Giovanni se afastou. Os três homens entraram na garagem e voltaram a fechá-la. Gio se viu na pior situação em que se metera nos seus 24 anos.
Do fundo da garagem, ao lado do azera, ele tentou escapar da morte.
— Tá bom, vocês venceram. Podem levar o carro de volta.
O homem grande, de óculos de sol se aproximou, com um sorriso no canto da boca. Parou bem perto do rosto de Gio.
— Não pense que vai ser assim simples, garoto. Você vai ter de se acertar com o patrão. Não sabe com quem se meteu.
O outro veio rápido e lhe deu um soco forte no estômago. O corpo de Giovanni se dobrou e ele não encontrava mais o ar. A dor foi lancinante e ele tonteou. Tateou a parede do fundo e se sentou. Assustado, ele começou a se defender novamente.
— Vejam, isso é um trabalho para qual eu fui contratado para fazer. Eu não sou o dono do negócio, apenas faço o serviço — esperou resposta, mas ela não veio. Estava pronto a entregar o patrão pela sua própria vida.
A porta da garagem novamente se abriu. Mais dois homens de terno preto do lado de fora abriram espaço para que o velho de cabelos grisalhos e terno de corte italiano entrasse. Ele veio andando devagar, com uma calma apavorante e abotoando o seu terno. Parou a uma distância de dez metros e cruzou os braços. Esse movimento não foi estranho aos olhos de Giovanni. Ele sentiu como se tivesse vivendo uma cena pela qual já passou em alguma oportunidade. Quando o homem começou a falar, foi como uma luz que iluminasse a sua mente.
— Rapaz, rapaz. Achou que fosse mais astucioso do que nós, não é?! Sabe de uma coisa? Quando eu era novo também achei que era mais esperto do que meu professor, mas ele me pegou colando e eu tirei zero. Este é seu zero. Se eu cheguei à presidência da câmara municipal de São Paulo é porque alguma coisa eu aprendi.
A confissão de sua posição apavorou ainda mais o ladrão de carros, que começou a tremer quando o homem enfiou a mão pelo paletó e tirou do bolso interno um revolver que, à distância, lhe pareceu uma pistola ponto 40, suficiente para tirar-lhe a vida. O homem prosseguiu:
— Você não achou que levaria o meu carro e passaria ileso, não é mesmo? Não é a primeira vez que passo por isso. Uma vez um jovenzinho, mais novo que você, me furtou o celular. Eu dei uma chance a ele. Mas, atualmente eu não posso por um bom momento e não acho que devo lhe dar esta chance.
O homem se aproximou um pouco mais e Gio paralisou. Ele queria se pronunciar, mas não conseguia. Sofreu um choque dentro de si e um filme passou pela sua cabeça. Os traços dos olhos verdes do homem, o formato de seu nariz e o jeito de andar. Giovanni jamais esqueceria. Passaram-se anos, mas as principais características de um homem não mudam e a memória de uma criança é poderosa. Gio ficou intacto, perplexo.
— Eu não devo ser sua primeira vítima. Então, em nome de todas as outras vou lhe dar uma lição. Já passei por maus bocados que me ensinaram que a vida não faz sentido. Minhas perdas foram enormes e hoje eu não tenho nenhum remorso por ter escolhido ser corrompido.
O tiro ecoou dentro da garagem. Atingiu Giovanni no lado esquerdo do peito. Seus olhos se esbugalharam diante do sentimento que aquele tiro lhe representava. Ele sentiu que sua vida fora tirada pela mesma pessoa duas vezes. Foi sentindo o corpo adormecendo. Não era dor, era o desligamento em câmera lenta de sua vida. Os olhos bem aberto se encheram de lágrimas, a boca tremia na tentativa de falar. Ele viu o homem se aproximar e se abaixar perto dele.
— Você fez a escolha errada, amigão. — o homem falou com raiva nos olhos. E seu hálito de hortelã fez com que Giovanni não tivesse mais dúvidas.
— P...pai?

Ele viu o rosto do homem se modificar, os olhos e a boca se abrirem, o espanto era iminente e ele sentiu a mão de seu pai segurar a sua nuca. Depois tudo foi o escuro. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário